Erasmo Carlos, o nosso amigo

Ícone da Jovem Guarda, desbravador e otimista por natureza, o tremendão foi do rock às baladas românticas durante seis décadas, jovial até o fim. Erasmo foi, para Roberto e para o resto do Brasil, o amigo corajoso e sincero que nos ajudou a entender a rebeldia, o amor e a vida.

Erasmo Carlos, o nosso amigo
Gente certa é gente aberta
Se o amor me chamar eu vou

Erasmo Carlos seguiu o chamado desse verso, de sua canção “Gente aberta”, durante 81 anos de vida e mais de 60 de carreira. Nas canções provocativas e nas reflexivas, sempre teve uma sensibilidade arrebatadora.

Erasmo estava lá na descoberta do rock pela juventude brasileira nos anos 50, na revolução pop da Jovem Guarda dos anos 60, nas canções rebeldes e românticas dos anos 70, nas parcerias em um amplo espectro da MPB e nos projetos da maturidade que nunca deixavam a brasa apagar.

Desde cedo, o “gigante gentil”, um homem afável de 1,93 m de altura, compôs de “Minha fama de mau” a “Gatinha manhosa”.

Acumulou um tesouro de mais de 600 músicas, que inclui “Sentado à Beira do Caminho”, “Mulher”, “Quero que tudo vá para o inferno”, “Mesmo que seja eu” e “É proibido fumar”.

Erasmo Carlos e Roberto Carlos

Turma predestinada

Quando Roberto Carlos chamava “o meu amigo” ao palco, Erasmo aparecia sorridente e carregava junto uma história antiga. Eles foram jovens sonhadores, fãs de Elvis Presley e fascinados com uma novidade: o rock n’ roll. Erasmo contou ao Fantástico:

Tinha o Tim Maia na minha rua, que foi criado comigo. Ele me ensinou a tocar violão. Me ensinou o Dó Ré Mi Lá. Descobri com Roberto Carlos que a gente podia fazer rock em português.

Erasmo Esteves nasceu na Tijuca, no Rio de Janeiro, em 5 de junho de 1941. Na adolescência, se reunia com a turma no Bar do Divino, na Rua do Matoso. Conheceu Roberto Carlos, nessa época, durante um concerto de Bill Haley no Maracanãzinho.

Foi amigo de infância de Tim Maia, com quem formou a banda The Sputniks em 1957. Talvez o grupo desconhecido com mais estrelas da história do Brasil, também teve Roberto Carlos na formação.

Roberto e Tim se desentenderam e levaram ao fim os Sputniks. Erasmo chegou a trabalhar como assistente do produtor Carlos Imperial, e seguiu na música com o grupo The Boys of Rock, mais tarde rebatizado The Snakes.

 

 

Erasmo Carlos, Wanderléa e Roberto Carlos

A brasa acende

Erasmo, Roberto e Wanderléa foram o triângulo de base da Jovem Guarda, movimento que eletrizou a indústria cultural brasileira e ditou o comportamento e a linguagem dos “brotos” em meados dos anos 60.

O pop britânico dos Beatles ganhou uma versão brasileira autêntica e vibrante, o iê-iê-iê, do qual Erasmo foi um dos arquitetos.

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Erasmo Carlos chegou a ser vocalista do grupo Renato & Seus Blue Caps, e garantiu a contratação do conjunto por uma gravadora.

Nos anos do programa ele criou ou cantou sucessos como “Vem quente que eu estou fervendo” e “Festa de arromba”, com letra que narra a própria a história musical efervescente da época.

Erasmo Carlos de jaqueta petra e camisa preta apontando.

Cancioneiro expandido

Habitué de revoluções, Erasmo também se aproximou de Jorge Ben Jor. Ele até começou a compor samba-rock com “Coqueiro Verde”, com Roberto Carlos, em 1970 - depois da Jovem Guarda.

Nessa década Erasmo se firmou como um dos grandes compositores brasileiros, com cancioneiro amadurecido. Ele gravou discos distantes da loucura anterior, da era da “gatinha manhosa” e da “fama de mau” - porém, sem nunca perder a manha nem a malícia.

 

São de 1971 e 1972 dois dos seus discos mais celebrados, “Carlos, Erasmo” e “Sonhos e Memórias”, mais próximos do soul e da MPB. “Gente aberta”, “Do fundo do meu coração” (de Roberto e Erasmo) e “De noite na cama” (de Caetano Veloso) estão entre suas faixas mais ouvidas até hoje.

No álbum de 1971 ainda havia a sensualidade de "Dois Animais na Selva Suja da Rua", de Taiguara, e "Maria Joana", que fazia referência à maconha e foi alvo da censura da ditadura militar.

Em 2014, ele falou sobre seu ímpeto de criação em entrevista ao g1:

Minha vida é compor. Eu sou compositor, não cantor. Canto por consequência da música que faço. O meu desejo é esse. Compor, gravar - esse processo me fascina muito.

Erasmo Carlos apontando.

A viagem dos anos 80

Nos anos 1980, já bem reconhecido, Erasmo colheu sucessos comerciais nos álbuns “Mulher” (1981), “Amar pra viver ou morrer de amor” (1982) e “Buraco negro” (1984), e um desencontro artístico no primeiro Rock in Rio, de 1985.

Por uma falha na programação, ele foi escalado para o dia de heavy metal, com Iron Maiden e Whitesnake. Àquela altura, o público já não tinha noção de seu pioneirismo no rock. Ele foi recebido com vaias.

Erasmo contou ao podcast g1 ouviu que tomou um “susto” ao descobrir que o rock tinha “tribos”, e que acumulava "ódio, agressão e radicalismo”.

 

Não foi uma descoberta só dele. Como sempre, o desbravador Erasmo deu a cara a tapa e ajudou a indústria musical brasileira a aprender junto. Otimista por natureza, absorveu a lição e seguiu inquieto pelo resto da carreira.

Erasmo Carlos e Roberto Carlos

Amigo de todos

O carinho entre Roberto e Erasmo sempre foi refletido no apreço de outras estrelas da música brasileira por parcerias com o Tremendão: Chico Buarque, Lulu Santos, Zeca Pagodinho, Skank, Los Hermanos, Djavan, Adriana Calcanhotto, Milton Nascimento…

Uma das parceiras e fãs famosas, Marisa Monte descreveu sua paixão:

Eu adoro a narrativa descritiva de suas composições e as cenas cinematográficas que ele sabia criar como ninguém para ilustrar as situações vividas nas canções

Nos anos 1990, ele colocou o pé no freio da produção e lançou só um álbum com músicas inéditas, “Homem de rua” (1992).

Erasmo poderia seguir tranquilo, mas acelerou de novo em “Pra falar de amor” (2001), quando completou 60 anos de idade. Seguiu jovial e aberto, em “Rock'n'roll” (2009) “Sexo” (2011) e “...Amor é isso (2018)”.

Erasmo comemorou os 50 anos de carreira com um show no gravado no Theatro Municipal do Rio em 2012.

Na vida pessoal, sofreu em 2014 com a perda do filho Alexandre Pessoal, após um acidente de moto no Rio de Janeiro.

Em 2019 foi lançada a cinebiografia “Minha fama de mau”, com Chay Suede no papel de um jovem fã de rock and roll que decide viver de música e ser uma estrela: Erasmo Carlos. Veja o encontro dos dois no Fantástico:

O álbum mais recente, "O Futuro Pertence À... Jovem Guarda", lançado em fevereiro de 2022, foi premiado com o Grammy Latino na última quinta-feira (17).

Erasmo Carlos e sua esposa, Fernanda Passos

Uma criança

Ao completar 80 anos, Erasmo citou uma de suas músicas mais conhecidas para descrever como via a vida, em entrevista ao “Jornal Nacional”:

Sou uma criança que não entendo nada. Eu olho a vida como uma caixa de surpresas. Eu acordo todo dia e digo: ‘o que vem hoje aí’?

O músico era casado com Fernanda Passos, de 32 anos, desde 2019. Eles namoraram por nove anos antes de oficializar a união. Erasmo também deixa os filhos Leonardo Esteves e Gil Eduardo.

Em seu último aniversário, cinco meses antes de morrer, aos 81 anos, o Tremendão usou as redes sociais para fazer um post autobiográfico.

Sou o resultado das minhas realizações… Gols e bolas na trave fazem parte do jogo já que a vida é curta e minha vontade é eterna… Sou o que pude e o que tentei ser plenitude… Quis ser muitos e sobrou um quando dispensei meia-dúzia dos que não me souberam ser… Contagiado pelo bem tornei-me um guerreiro da paz… O meu canto será ouvido assim como o som dos ventos, enquanto o sol brilhar e as lembranças resistirem… Dei passos vendados em caminhos movediços para ser merecedor de um lugar no pódio do amor.

Fonte http://especiais.g1.globo.com/pop-arte/musica/2022/erasmo-carlos-amigo-de-todos/?_ga=2.234097367.830702602.1669218779-1259623956.1669121869